De dentro da parede, no rasgado do reboco, do tijolo, dos canos e ferros (que se rasgaram fácil que nem papel), brotam galhos de plantas que se agigantam e espiralam.Verdes, mas também azuis e amarelos e vermelhos technicolor.Eu fico pensando na seriedade do que eu devia estar fazendo, no que eu devia saber sobre o ano de 1848 e os movimentos operários na Europa e não consigo imaginar como isso pode ser mais importante que os bichos multicor que brotam da cômoda em frente à minha cama. Vejo Prodhoun como um camaleão de dois rabos. Marx cospe maravilhosas aranhas que tecem fios de ouro cujas teias formam uma cama elástica a pouco mais de um metro de onde eu estou deitada. E todos eles – todos os bichos, sejam eles homens históricos ou seres fantásticos – são atraídos pelo jardim suspenso da minha Babilônia minúscula de subúrbio.Subúrbio. Movimento operário.Esfrego os olhos e espanto do meu quarto a fauna e flora do meu mundo paralelo. Preciso estudar. Porém, uma melodia hipnotizante toma corpo e me distrai. A Austrália foi a primeira a conseguir a jornada de oito horas,mas aqui no meu país-cômodo o relógio marca o compasso de uma sinfonia urbana desigual e louca e meus minutos parecem horas de trabalho bem vividos (trabalho sem trabalho) . Toca a música que embala os meus sonhos pré-dormidos -sons de sino ao longe (os sinos da igreja ainda são tocados?), ensaio de escola de samba, motos sem escapamento, novela no vizinho.... Mas os sons se tornam mais baixos e vão diminuindo até se tornarem inaudíveis.
Não vejo mais as criaturas mágicas de 5 minutos atrás.O silêncio é, então, só o que é – silêncio.E então me esmaga, me aperta os músculos e me deixa sem ar. Estou presa, sinto um frio horrendo na espinha, meu coração dispara. Tenho medo da morte. Instintivamente pego o livro de História e rasgo. Luto pela minha vida, fazendo picadinho das páginas. Mas os pedacinhos ainda me parecem tão grandes!... Vejo ainda umas palavras inteiras, olha só “anarquistas”, “burguesia”, “Kossuth”... e me desespero. Minhas têmporas doem. AAAAhhhh, minha cabeça vai explodir! Levo os pedacinhos à boca, mastigo o melhor que posso. Engulo com dificuldade o papel grosso, parece que sinto o gosto da tinta goela abaixo, os cantinhos do papel amassado irritando a laringe, faringe, esôfago.
Quando já não agüento mais engolir, cuspo o resto do texto que me ameaçava de morte, remexendo bem os pedacinhos, para ter certeza de que a saliva apagou a tinta. Nenhum vestígio. Agora só vejo metades de palavras. O resto – os trechinhos cuspidos – estão borrados, não posso ler o que dizem.
Dou graças a Deus.
Volto a respirar normalmente e meu coração desacelera. É como voltar de um mergulho forçado em águas hostis. Devagarinho me deito novamente, cansada daquilo tudo. Antes de fechar os olhos, contemplo novamente a cama elástica dourada acima da cama em que me deito e sorrio, sabendo que em alguns segundos uma das aranhas que a teceram aparecerá para me sorrir de volta.
Estou salva.
Friday, March 30, 2007
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1 comment:
tentadoramente realista e acido, ao ponto de digerir alguns desentendimentos acerca dos sentimentos que sao comumente humanos.adoro os detalhes materializados em pedacos de palavras...honestamente brutal!
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