Friday, March 30, 2007

De dentro da parede, no rasgado do reboco, do tijolo, dos canos e ferros (que se rasgaram fácil que nem papel), brotam galhos de plantas que se agigantam e espiralam.
Verdes, mas também azuis e amarelos e vermelhos technicolor.
Eu fico pensando na seriedade do que eu devia estar fazendo, no que eu devia saber sobre o ano de 1848 e os movimentos operários na Europa e não consigo imaginar como isso pode ser mais importante que os bichos multicor que brotam da cômoda em frente à minha cama. Vejo Prodhoun como um camaleão de dois rabos. Marx cospe maravilhosas aranhas que tecem fios de ouro cujas teias formam uma cama elástica a pouco mais de um metro de onde eu estou deitada. E todos eles – todos os bichos, sejam eles homens históricos ou seres fantásticos – são atraídos pelo jardim suspenso da minha Babilônia minúscula de subúrbio.
Subúrbio. Movimento operário.
Esfrego os olhos e espanto do meu quarto a fauna e flora do meu mundo paralelo. Preciso estudar. Porém, uma melodia hipnotizante toma corpo e me distrai. A Austrália foi a primeira a conseguir a jornada de oito horas,
mas aqui no meu país-cômodo o relógio marca o compasso de uma sinfonia urbana desigual e louca e meus minutos parecem horas de trabalho bem vividos (trabalho sem trabalho) . Toca a música que embala os meus sonhos pré-dormidos -sons de sino ao longe (os sinos da igreja ainda são tocados?), ensaio de escola de samba, motos sem escapamento, novela no vizinho.
... Mas os sons se tornam mais baixos e vão diminuindo até se tornarem inaudíveis.
Não vejo mais as criaturas mágicas de 5 minutos atrás.
O silêncio é, então, só o que é – silêncio.
E então me esmaga, me aperta os músculos e me deixa sem ar. Estou presa, sinto um frio horrendo na espinha, meu coração dispara. Tenho medo da morte. Instintivamente pego o livro de História e rasgo. Luto pela minha vida, fazendo picadinho das páginas. Mas os pedacinhos ainda me parecem tão grandes!... Vejo ainda umas palavras inteiras, olha só “anarquistas”, “burguesia”, “Kossuth”... e me desespero. Minhas têmporas doem. AAAAhhhh, minha cabeça vai explodir! Levo os pedacinhos à boca, mastigo o melhor que posso. Engulo com dificuldade o papel grosso, parece que sinto o gosto da tinta goela abaixo, os cantinhos do papel amassado irritando a laringe, faringe, esôfago.
Quando já não agüento mais engolir, cuspo o resto do texto que me ameaçava de morte, remexendo bem os pedacinhos, para ter certeza de que a saliva apagou a tinta. Nenhum vestígio. Agora só vejo metades de palavras. O resto – os trechinhos cuspidos – estão borrados, não posso ler o que dizem.
Dou graças a Deus.

Volto a respirar normalmente e meu coração desacelera. É como voltar de um mergulho forçado em águas hostis. Devagarinho me deito novamente, cansada daquilo tudo. Antes de fechar os olhos, contemplo novamente a cama elástica dourada acima da cama em que me deito e sorrio, sabendo que em alguns segundos uma das aranhas que a teceram aparecerá para me sorrir de volta.
Estou salva.

1 comment:

itzaac said...

tentadoramente realista e acido, ao ponto de digerir alguns desentendimentos acerca dos sentimentos que sao comumente humanos.adoro os detalhes materializados em pedacos de palavras...honestamente brutal!